Professores ainda creem que reprovação pode estabelecer justiça na escola, mostra estudo do Cenpec
Apesar da posição, docentes não dão respostas categóricas a favor da retenção; levantamento foi conduzido junto aos professores participantes da Olimpíada de Língua Portuguesa
Apesar de não declararem explicitamente, muitos professores da educação básica no Brasil ainda acreditam significativamente no poder da reprovação escolar como elemento de instauração de uma justiça do mérito dentro do ambiente escolar, alicerçada em avaliações de caráter normativo.
É o que se pode inferir dos dados levantados pela pesquisa “Crenças de professores sobre reprovação escolar”, realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Comunitária, o Cenpec, divulgada em dezembro último, cruzados com números de aprovação no país. Segundo o levantamento, que aplicou questionário com 189 afirmações, para as quais os cerca de 5.500 respondentes atribuíram graus de concordância/discordância (veja texto sobre a metodologia), 12,8% são contrários à reprovação, 9,4% favoráveis e a grande maioria, 77,8%, não apresenta posicionamento claro sobre o tema. A pesquisa, que também aferiu as crenças dos professores associadas à justiça e à avaliação no ambiente escolar, integra uma aferição internacional, com dados de Brasil, França, Romênia e Suíça francesa. O Brasil foi o primeiro país a finalizar essa parte do levantamento, com foco central na questão da reprovação e questões associadas.
Apesar de os números apontarem para um percentual de menos de 10% de docentes que se dizem favoráveis à reprovação como instrumento de justiça na escola, o grande número daqueles que foram evasivos em suas respostas indica que, na prática, a reprovação segue como crença arraigada. Ainda que hoje, após cerca de 30 anos da introdução de políticas de ciclos e progressão continuada, ela já não faça eco sobre muitos professores e gestores educacionais, sua presença é atestada pelos números nacionais.
Como ressalta Antônio Augusto Batista, coordenador do levantamento, enquanto o índice médio mundial de reprovação na educação básica é de 2,9%, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no Brasil esses números atingem os 8,2% no ensino fundamental e os 11,5% no ensino médio (Censo Escolar 2015). As séries de cada etapa em que há maior incidência de reprovação são o 3º ano do fundamental 1 (que marca o fim do ciclo de alfabetização), o 6º do fundamental e o 1º ano do ensino médio.
No paper de apresentação do levantamento, os pesquisadores levantam a hipótese de que, em razão do “contexto de políticas contrárias à reprovação, os professores podem ter evitado demarcar suas opiniões sobre o assunto”. Indício dessa postura também aparece na reação a artigo de Batista publicado no Huffington Post (“Por que ainda se acredita que reprovar alunos é a solução?”).
“No site, eles dizem que, sem reprovação, perdem autoridade, que é preciso haver esforço, que as famílias não ajudam, todos esses argumentos aparecem claramente. Eu esperava que fossem mais claros na pesquisa, mas eles se autocensuram muito, nem numa situação de sigilo se expressam claramente. É sinal de um grupo que não tem estatuto profissional forte, como médicos ou advogados”, avalia o pesquisador do Cenpec, para quem há alguma coisa de verdade no que dizem quando mais livres, como nos comentários no site. Para entender isso, é preciso mais pesquisa.
Coerência
No levantamento recém-divulgado, podem-se aferir duas linhas de coerência entre as noções de reprovação, avaliação e justiça: aqueles que defendem a reprovação creem que é preciso ressaltar o comportamento meritocrático, são defensores ou praticam uma avaliação de cunho mais normativo e acreditam que quanto mais precoce for a reprovação, melhor.
Já quem repudia a reprovação tende a conhecer mais as pesquisas sobre o tema, tem uma noção de justiça mais corretiva, visando a equidade, e pratica mais a avaliação de caráter somativo ou formativo. O estudo também permite estabelecer uma associação entre aqueles que fizeram pós-graduação stricto sensu ou que têm mais tempo de docência e a não adesão à reprovação. Ou seja, pode-se inferir que as pesquisas nacionais e internacionais sobre os efeitos ruins da reprovação circulam mais nesse estágio de formação.
Como relata o estudo, as pesquisas internacionais apontam que “a reprovação escolar é preditor do abandono escolar, conturba a trajetória escolar, é prática financeiramente dispendiosa e gera resultados contestáveis” (veja indicações de estudos no Saiba Mais, ao fim da matéria).
Crenças vs conhecimento
No ambiente escolar, a crença funciona como uma espécie de suporte às práticas cotidianas, muitas vezes dissociando-se do conhecimento que deveria pautar as ações educativas. Mas, em muitos casos, a falta de uma boa formação e de amparo institucional leva os docentes a se apoiarem no que dizem seus pares mais experientes e em sua própria experiência pessoal como alunos. Na pesquisa do Cenpec, 54,58% dos respondentes disseram que o ponto de vista de colegas e da direção é favorável à reprovação; 27,7% foram reprovados na educação básica.
Essa cultura institucional – ou capital profissional – que se vai formando entre os professores acaba por consolidar práticas nem sempre corroboradas pelo conhecimento produzido por meio de pesquisa. Antônio Batista atribui isso, entre outras coisas, ao difícil processo de socialização dos novos docentes. Como há poucos colegas que se prontificam a ajudá-los, eles acabam fazendo uma espécie de formação em serviço baseada na “autodefesa dos mais experientes em relação às dificuldades encontradas”. “São soluções prontas, carregadas de ressentimentos em relação às famílias, aos colegas, ao estado, aos alunos, à formação anterior, considerada muito teórica. É um momento de afirmação dessas crenças. A história pessoal é o que aparece mais. E são trajetórias individuais, não conhecimento elaborado”, avalia o pesquisador.
Ivana Sacramento, com 22 anos no magistério e que hoje atua na formação continuada na rede estadual da Bahia, viveu um percurso que reflete muito do que aparece na pesquisa. Fez graduação em letras, especialização, mestrado e hoje cursa doutorado em linguística. Quando saiu do magistério, foi dar aulas no Fundamental 1. Ali, a cultura da reprovação era arraigada. “Já era algo esperado para aquelas crianças, como se elas não pudessem ir adiante. Não eram levadas em consideração as condições socioeconômicas, era como se o fracasso escolar já estivesse determinado”, relembra. A falta de metodologias voltadas a superar a situação e o trabalho solitário dos docentes acentuavam o cenário.
Alguns anos depois, foi dar aulas no Fundamental 2 e no ensino médio. “Já era uma cultura um pouco diferente, todos eram graduados, alguns com pós lato sensu.”, diz. Ela lembra que quando a cultura começou a mudar, com a introdução de ciclos e progressão continuada, houve resistência dos professores, pois achavam que estavam pedindo que aprovassem os alunos de qualquer jeito. Hoje, a reprovação já é vista por muitos como algo nocivo, mas há queixas sobre as condições de trabalho. Nas formações, por exemplo, há metodologias que envolvem uso de internet. Mas nas escolas, muitas vezes, não há acesso à rede.
Conhecimento como crença
Mas até mesmo o conhecimento solidamente constituído como tal é passível de virar crença. Às vezes por generalização, às vezes por difusão incorreta, ele pode se perder das questões e respostas de origem. “É o que o [sociólogo francês Pierre] Bourdieu chama de amnésia da gênese, algo que vira fetiche, dogma, o que leva à crença”, lembra Batista, do Cenpec. Isso muitas vezes ocorre porque a pesquisa teórica analisa partes de um determinado fenômeno, sob um determinado ponto de vista teórico. Mas, quando apropriadas, suas conclusões são estendidas ao todo. “Na sala de aula, lida-se com o fenômeno inteiro.”
Um exemplo, relembra o pesquisador, é a pesquisa de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita, cujas conclusões acabaram sendo associadas, de forma imprópria, também à aquisição da leitura.
Para que esse diálogo entre teoria e prática se dê de forma consistente, formações mais específicas como os mestrados profissionais têm ajudado os docentes. É o caso de Mari¬beth Paes, professora há 24 anos que hoje leciona nas redes municipal de Uberlândia (Educação de Jovens e Adultos) e no ensino médio da rede estadual mineira.
Cursando o mestrado profissional em letras na Universidade Federal de Uberlândia, ela tem descoberto novos meios de avaliar os alunos, o que possibilita enxergá-los de maneira mais completa. Como exemplo, cita a questão da avaliação formativa, que a fez levar em conta a produção oral dos estudantes, como as discussões em grupo e outros trabalhos mais corriqueiros, e não apenas as provas e a produção escrita. “Sempre considerei a escrita como superior à oralidade, mas as leituras feitas no mestrado têm me ajudado a refletir sobre questões em que eu não pensava havia muito tempo”, relata.
Silmara Colombo, professora a partir dos anos 1990 das redes municipal e estadual de Sertãozinho (SP), desde o início deste ano trabalhando como técnica da secretaria de Educação do município, concorda com a visão de Maribeth. Para ela, tem de haver uma transformação na avaliação, passando de formativa a diagnóstica e formativa.
“Concordo com a progressão continuada, desde que seja possível colocar em prática a avaliação da melhor forma possível. Há casos em que o aluno é aprovado sem ter aprendido nada. Depois, ele não tem como acompanhar”, defende.
A posição de Silmara está ligada a uma série de fatores que contribuí¬ram para que a progressão continuada fosse vista como “aprovação automática” por muitos educadores e pela sociedade, com uma “inestimável contribuição” dos meios de comunicação. Desde que, com a chegada das primeiras pesquisas que indicavam os efeitos negativos da reprovação para a continuidade da vida escolar, em especial dos estudantes de nível socioeconômico mais baixo, políticas de ciclos e de progressão começaram a ser adotadas houve grande descompasso e ausência de ações complementares que as sustentassem.
Ou seja, apenas deixou-se de reprovar, mas foram esquecidos ou negligenciados os pressupostos que fariam com que esses alunos pudessem dar saltos positivos de aprendizagem: a introdução de processos contínuos de diagnóstico e supervisão para evitar ou minimizar defasagens, uma atenção mais individualizada e uma avaliação menos centrada nas grandes provas. “Falta, também, uma cultura de que é preciso acompanhar alunos com diferentes ritmos na sala de aula. A cultura é da ordem unida, de meta única. Poderíamos ter, por exemplo, metas mais avançadas, intermediárias e básicas. Mas não, é aprendeu ou não aprendeu”, diz Batista.
Com a introdução do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em 2007, outro elemento entra em ação: já em consonância com a ideia de que reprovar alija os mais pobres da educação, um dos elementos que compõem o índice é o do fluxo escolar, a taxa de aprovação, aliado à nota na Prova Brasil. Mas, como muitos governos precisavam (e precisam) “mostrar serviço” na educação, as redes e escolas, em muitos casos, passaram a ser pressionadas para não reprovar os alunos. Assim, vários municípios que melhoraram seu índice o fizeram principalmente por não reprovar, o que causou sentimento ambíguo em muitos docentes que concordam que a reprovação apenas é maléfica, mas que se sentem impotentes ao ver alunos sendo aprovados sem ganhos de aprendizagem.
Exatamente por esse sentimento dos professores, que junta a desvalorização de seu trabalho a certa impotência para mudar a realidade dos alunos, é que o organizador da pesquisa do Cenpec ressalta que não é o caso de jogar a meritocracia no limbo total e absoluto. Antônio Batista lembra apenas que o mérito não pode restar como orientação principal num país em que as desigualdades entre aqueles que chegam à escola são tão profundas.
“A meritocracia não pode ser deixada de lado. É um ideal que não podemos abandonar. François Dubet, sociólogo da educação francês [autor de O que é uma escola justa, Cortez Editora], fala que, na nossa sociedade, a meritocracia encobre a distribuição desigual dos capitais herdados. Mas, sem ela, voltaríamos à sociedade aristocrática, de castas. Ela é muito importante, é um ideal a ser perseguido”, resume.
Assim, 226 anos depois de o filósofo francês Nicolas de Condorcet lançar as Cinco memórias sobre a instrução pública (Editora Unesp), obra em que alinhavava questões pertinentes à ação da educação como equalizadora das desigualdades sociais rumo à cidadania, devemos ainda aproximar as condições daqueles que chegam à escola para que esta possa cumprir seu papel social.